segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Deletando a escola

JOSÉ DE SOUZA MARTINS, SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA USP, É AUTOR DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN, MÍSTICO (CONTEXTO 2011) - publicado em  estadão.com.br
É um enorme equívoco atribuir, na disciplina de português, a uma menina de 12 anos a tarefa "escolar" de entrar em sites de relacionamento, com pseudônimo, para atrair um pedófilo e com ele entabular conversação, ainda que sob supervisão dos pais. Essa desorientação pedagógica só não foi adiante porque encontrou uma barreira na própria criança e em sua mãe, que foram pedir explicações à diretora da escola. O caso torna-se, em si mesmo, menos grave do que parece porque foi sugerida pela professora, por escrito, a supervisão dos pais. Eles poderiam decidir, portanto, contra a proposta, como decidiram. A proposta continha essa cautela, sabendo a professora que entrava em terreno de risco e dúvida. Mas o alarma pôs em ação a rede de vigilância que nos cerca a todos, cada vez mais, e funciona menos no interesse da menor envolvida do que em função das metas próprias de tudo que é burocrático nas agências de controle social. Nesta altura, aquela específica criança já não tem a menor importância. Começa aí a lenta agonia de todos, sobretudo a dela própria, nas complicadas investigações que já começaram e levarão a lugar nenhum, quando muito ao ponto de partida, o erro da opção pedagógica. Nos velhos tempos da escola risonha e franca, isso teria sido resolvido com uma advertência.
No entanto, o caso de São Carlos evidencia mais um componente da crise da escola e não especificamente daquela escola e daquela professora. A escola desautorizada nas tradições propriamente pedagógicas, no confronto das novas tecnologias que com ela disputam precedência e autoridade. A associação entre escola cada vez mais frágil e internet cada vez mais poderosa tem produzido deformações na educação, sob a fantasia do acesso fácil ao conhecimento respeitável. Tarefas escolares podem ser "cumpridas" mediante simples recortes e colagens, sem esforço intelectual do aprendiz e sem aprendizado. Já se disse que a internet aceita tudo. Pode ser um poderoso instrumento de educação, na difusão da informação, da arte, da literatura e da ciência. E pode ser um poderoso instrumento de perversão, até na fraude em relação aos deveres escolares e não apenas em relação ao episódio que motiva este comentário.
As tecnologias de comunicação instantânea tornaram-se acessíveis a qualquer um, tanto ao professor seguro quanto ao professor ingênuo, tanto ao aluno ancorado na estrutura da família quanto ao desprotegido. O computador pessoal, que revolucionou o acesso à informação e o cotidiano dos processos interativos, revoluciona, sim, a vida social, altera padrões de sociabilidade, aniquila valores sociais e inaugura valores invasivos, permanentemente provisórios. Essa a grande e complicada mudança. Os valores consolidados pela longa duração da vivência social vão sendo substituídos por valores de ocasião. Os relacionamentos são descartáveis e deletáveis. O verossímil está ocupando o lugar do verdadeiro. O computador tornou-se meio de violência contra nossa já precária concepção de liberdade e de direito, mesmo que seja também um meio de afirmação de nosso direito à opinião própria.
O computador torna obsoleta a velha pedagogia voltada para o primado do bem comum, do direito regulado pelo dever em relação a pessoas de carne, osso e sentimentos. Ele facilita a vida, mas também suprime a alteridade que nos ensina a nos reconhecermos no outro. Somos agora os filhos da solidão profunda que há na alteridade virtual e falsa. De certo modo, está morrendo aquele que nos diz quem somos.
O problema ocorrido em São Carlos nos fala da docente parcialmente privada das referências de um temor preventivo e de segurança, na cautela tão necessária em relação ao desconhecido, ao incerto e não sabido. O caso expõe a desatenção quanto ao que vem antes e depois. Temos visto dolorosos e trágicos episódios de invasão desse território especial do encontro de gerações, que é a escola, pelo imaginário sem referências sociais concretas. Nele não há nem mesmo distinção entre vida e morte, como se viu no caso recente de São Caetano, o de um menino que atirou na professora e descobrindo ali, aterrorizado, que a arma pode matar, matou-se.
Estamos em face do achatamento cultural que há na privação de consciência crítica, na homogeneidade forjada, que suprime a consciência dos perigos reais da promiscuidade viabilizada pela supressão das barreiras protetivas que definem o que é próprio e impróprio. A professora equivocada é ao mesmo tempo vítima dessa nova cultura de falsas equivalências, que embaralha no livre acesso o louvável e o condenável, que deleta o real mediante um simples toque de tecla.

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